Observei-o com admiração e delícia. Ele ali estava… sentado em frente ao piano de cauda preto. Escrevendo nas teclas da mesma maneira que eu o faço no papel... Espetando freneticamente chagas no padrão dos sentimentalistas e corrompendo a razão aos racionalistas, ele teclava simplesmente mas criticava sem palavras, repostava perdições antigas. Reparei que o estava a fazer cada vez com mais intensidade, com mais raiva nos dedos e mais angústia nas notas... A melodia apaixonante viajava para além do ouvido até ao coração. Tocou no meu e senti o rasgo doer, como se as notas fossem puro álcool! A expressão dolorosa que ele possuía enquanto tocava, mostrava que também ele estava despedaçado algures… Não parando por um segundo que fosse, o corpo dele já nem parecia ter controlo próprio. E eu, quieta, só desejava que não mais parasse. Aprazia-me a sentir cicatrizar-me àquele som.
Ele era tão fiel à pauta dos sentimentos!
Parou, ainda embriagado fechou a tampa do piano e sorriu para mim. Cicatrizado. Tal como me conseguiu deixar.
Um dia também eu vou sentar-me num assento daqueles… e tocar notas em teclas brancas e pretas, tocar muito para além da sensibilidade auditiva de quem conseguir ouvir a minha melodia.
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