Saturday, April 28, 2007

Nudez.


Olhares despidos de brilho
Enleios despidos de braços

...

Lábios despidos de beijos
Pensamentos despidos de razão

...

Orações despidas de voz
Melodias despidas de som

...

Corpos despidos de presença
Corações despidos de intuição

...

Autoridades despidas de moral
Vidas despidas de existência

...

Friday, April 27, 2007

Shuuu...

Mesmo quando as palavras teimam em não saltar no trampolim da nossa boca, naqueles instantes em que sentimos que estão prestes a descolar dos nossos lábios em leves voos; quando desejam bailar diante dos nossos olhos, e desafiar-nos para a próxima etapa: os actos. Mesmo que tenhamos passado a noite a treinar aqueles nossos dizeres, a sonhar até com os possíveis diálogos de um amanha. Naquelas alturas em que pensamos ter tudo estudado, para nada falhar! Elas, com sua altivez, teimam em nos deixar ficar mal… E deixam-se manter guardadas dentro de nós… Escondidas, no escuro, debaixo da nossa língua… a tentar espreitar para o exterior com receio… E é num subtil gaguejar que nos apercebemos que de nada valeu tanto estudo, tanto cálculo. Sentimo-nos impotentes e as nossas faces começam a rosar. Mesmo nesses momentos, em que somos sufocados por um silêncio espontâneo… temos de o aprender a ouvir…
Porque até o silêncio tem de ser ouvido, este sábio que do nada nos pode dizer tanto!

Entre o sonho e a consciência.

Eu sei que ele não iria chorar no meu ombro, mesmo sendo esse o seu desejo. É arrogantemente orgulhoso… um pouco como eu portanto.
Eu não consigo ver a fragilidade escondida por detrás de um falso sorriso de confiança, não sei ainda como destapá-lo, para debaixo encontrar o seu sorriso de porcelana. Distinguir um pedido de ajuda por detrás daquele olhar tão forte, quase assustador de tão bravio e fixo.
Eu senti que querias parar... que estavas farto e cansado de andar atrás de sonhos numa estrada pavimentada por fragmentos de vidro, demasiado cruel para os teus pés descalços... Cortante demais para essa tua alma tão imaculada. E a tua consciência, essa, era o álcool que ardia nas feridas, tentava sarar mas doía demais.
A quimera falava, falava muito alto. Gritava, gritava por ti...
Tu sangravas e não desistias... Tu sangravas e calavas-te... Não partilhavas sequer a dor. Essa que, tão melhor que a utopia, teimava em querer comandar a tua consciência.
Espreitaste-me e viste-me a teu lado nesse percurso.
Viste-me a sangrar também.
(Talvez pela mesma quimera que tu. Aquela que ainda está em flor.)

Thursday, April 26, 2007

O agora fumador.

Por mero acaso do destino, o seu número de telemóvel regressou-me às mãos e sem demora, combinamos sair a uma terça-feira, que segundo o horóscopo semanal (coisa que realmente não me acredito muito) seria o melhor dia daquela semana para os indivíduos do meu signo…
(“Ui, que eu já não o vejo faz tempo!”)
Em mim tremelicava aquele alvoroço de criança, queria ver se ele continuava o mesmo, se eu continuava a mesma e se ambos continuávamos na mesma enquanto tagarelávamos.
Lembro-me de brincarmos muito, até mesmo com os olhares, parecia que fazíamos frente um ao outro em determinadas situações. Eu gostava… Sentia-me mesmo bem ao seu lado… Libertava, de todas as vezes, a menina escondida dentro de mim. Ela já não espreita por mim há muito também, por isso é que a ansiedade de o ver era mais que a normal. Queria contactar de novo com o meu lado acriançado.
Sim, lembro-me da sua fisionomia um tanto desajeitada, muito alto e magro. Os seus olhos grandes, e escuros como a noite, que carregavam aquela expressividade toda entre o ingénuo e o franco.
Falávamos de tudo, partilhávamos as peripécias do nosso dia-a-dia e estávamos sempre ali quando um de nós precisava de um abraço… Éramos, sem dúvida, grandes amigos!
Combinamos no café onde a nossa turma se costumava reunir depois de um dia de aulas, o ambiente não mudou muito após estes anos. Quando entrei, dei de caras com um sujeito alto e bem constituído. Pensei, entre segundos “é ele”. Porém algo me deteve, este pegava entre dedos um cigarro: “Não, ele dizia-se incapaz de fumar…”; mas aqueles olhos não mentiam: ”Sim, é ele!”. Aproximei-me e cumprimentei-o. Falou-me calmamente: “Então Sara, o que é feito de ti?” e assim recomeçamos mais uma das nossas infindáveis conversas… Tinha “crescido” e de facto eu também. Os nossos lados acriançados deram mãos sim, mas de forma mais serena, madura. Nós mudamos inevitavelmente com a passagem do tempo, mas permanecemos com a nossa verdadeira essência guardada.
Apagou mais uma última ponta de cigarro e recomeçou a falar após humedecer os lábios. Ouvia-o atentamente… estava encantada! A sua inconfundível maneira de falar, tão precipitada e impaciente, e o seu português mal dominado davam ao seu rosto uma expressão levemente dolorosa. Posso até dizer que as palavras lhe esfolavam os lábios ao passar. Terminava mais uns dizeres e voltava a si, a mesma ternura, aquele seu ar naturalmente afável com que me olhava fixamente.
Sim, posso dizer que não mudou nada… e afinal, nem mesmo eu.

Wednesday, April 25, 2007

Orgulho intragável.

Enquanto te gritava para saíres, rezava não sei a que Deus para que ficasses. Olhava-te a ir e mantinha-me queda, inexpressiva, com um ar de inquebrável. O meu olhar esperava que te virasses, que as tuas costas me dissessem esse tal adeus final e os teus olhos resolvessem encantar-me com o alívio de um breve regresso. Mas foi a tua sombra que me anunciou… e as tuas pisadas tornaram-se mais ligeiras e determinadas. Não te viraste, não olhaste para trás e eu, paralisada pelo meu vão orgulho deixei-me ver-te partir e nenhuma palavra te proferi, nem pelo teu nome chamei! O meu olhar teimava em não sair daquela porta, o meu coração palpitava cada vez mais de força com a ansiedade de ouvir a campaínha, com a esperança de te ver nesses segundos. Olhei a porta durante quase duas horas e acabei por desistir. Custou… mas apercebi-me por fim que tão cedo não voltarias. Agarrei-me a outra inútil expectativa, a de me telefonares ou mandares alguma mensagem… esperei… esperei… esperei paciente e fervorosamente que me dissesses algo, que me desses um simples sinal de vida. Tantas vezes olhei a janela do meu quarto esperando poder ver o teu carro estacionado à minha porta, nem que fosse para te ver de relance. Passaram dias… e a coragem para te falar ainda não existia em mim. Lutava entre a guerra da fusão de amor e orgulho… era o último que acabava por vencer e mais uma vez nada fazia. Passaram meses… esperava ainda por ti e ia semeando bocadinhos da minha alma na terra lamacenta a que chamava o meu amor mas, a única flor que chegou a brotar foi a dor, a mágoa de te perder. Passaram três anos e ainda penso em ti. Penso sim… e as lágrimas que ainda me caiem pelo rosto são agora de arrependimento por muitas ocasiões não ter cedido, dado o braço a torcer, perder a minha razão pela tua, demonstrar a minha verdadeira vulnerabilidade face às mãos de uma forte paixão. Não te peço para regressares, agora somente te peço para me ouvires, dir-te-ei que errei e que estou a pagar, justamente, esses erros de cada vez que contemplo uma fotografia em que lá estejas, ouço a tocar na rádio a “nossa música”, de cada vez que te vejo a vaguear, perdido, nos meus pensamentos. Conto-te isto porque não te quero amar mais, quero-me libertar definitivamente de ti, quero enterrar este amor e metade de mim que acabou por morrer com ele também. Peço-te que me compreendas, no fundo que me perdoes os perdões que não te cheguei a dar. Parte de mim morrerá, bem sei, porém, a outra que resta irá aprender a viver novamente. Vou-me esforçar para que a outra parte de mim volte a amar… Mesmo que tarde, só o nosso amor me ensinou a ceder…

Tuesday, April 24, 2007

Rosa Negra.

Ó tu, Rosa Negra,
que nasces em meu peito,
Mais perfeita que deusa grega...
Queimas meu coração já desfeito!

Entre as chamas, consumida,
beijo tuas pétalas com fervor.
Espeto teus espinhos, comovida,
e escorrem rubras lágrimas de Amor...

Minha alma porém, não arde,
mantém-se branca, fresca e pura.
Este fogo ardente torna-se cobarde
quando me queima de loucura.

Tu, minha musa, não desfolharás.
Não deixarei tua essência murchar.
A arder em mim continuarás
e este inútil amor...irá perdurar...

Saturday, April 21, 2007

Rodrigo Leão e Cinema Ensemble

O músico apresenta-se, hoje, acompanhado pelos Cinema Ensemble, no Coliseu do Porto para um espectáculo que começa às 21.30h. Rodrigo Leão pertenceu aos Madredeus e aos Sétima Legião e é dotado de uma sensibilidade fora do comum, que através da sua música nos leva a uma “viagem do sentir”. Teve como primeiro trabalho a solo, lançado em 1992, o”Ave Mundi Luminar”, o primordial de muitos álbuns de sucesso.
Este é, sem dúvida, um espectáculo a não perder! Bilhetes entre os 20 e os 35 euros.

Os melhores do ano da Rádio Nova Era

Ainda hoje, para um outro tipo de gostos musicais, o Pavilhão Rosa Mota, também conhecido por Palácio de Cristal vai receber mais uma edição deste evento.
Esta gala organizada pela Rádio Nova Era é já um marco nos espectáculos anuais portuenses. O seu objectivo é premiar e homenagear as melhores músicas e intérpretes da música nacional e internacional.
O espectáculo conta com as actuações de Da Weasel, Buraka Som Sistema, Expensive Soul, Mundo Secreto, Tara Mcdonald, Barbara Tucker, Chris Willis, Gary “Nesta” Pine, Dollarman, Gutto feat. Liliana, Ez Special, Layout e a actuação de Dance for Kids.
Começa às 21h e os bilhetes são a 5 euros.

Friday, April 20, 2007

Fez-me cinema.

O som do silêncio tornou-se ensurdecedor de tão constantemente irritante. Este programou no meu quarto uma espécie de bomba relógio em que a contagem parece não cessar. E já são 5:30…! Ggrrr! Perco-me entre ovelhas mal contadas e volto mais uma vez a dar-me por vencida, convenço-me que esta é só mais uma teimosa e singular insónia. Penso: "amanhã espera-me uma outra noite…" (como se me servisse de consolo!).
Experimentando então, diminuir as horas supérfluas desta dita "noite", levanto-me. O corpo fresco contraria a mente que ainda pede fervorosamente descanso. Em pontas de pés, muito sorrateiramente vasculhei as minhas coisas em busca de fácil distracção, tentando sempre não quebrar o silêncio, esse calado, que embebia o resto da casa. Fui surpreendida com algumas fotografias que me saudaram com um simples abrir de gaveta. Pareciam ser de pessoas que reconhecia, aquelas sãs expressões que sempre deliciavam a objectiva ocular, em cerimónias que brincavam e espevitavam a minha recordação. Espalhei todo o conteúdo no chão e fui separando com as mãos as que mereciam atenção primária. Porém houve uma, uma só, que me captou toda. Nessa, o papel fotográfico estava em branco. Olhei melhor e vi contornos distorcidos, desenhados levemente como que por um bico de lápis. Um cinza mortiço delineava aquilo que pareciam ser as linhas de dois rostos. O silêncio não me estava a deixar concentrar. Era demasiado barulhento! Mais atentamente olhava e menos me parecia revelar. E as fotografias! Essas outras, mortas e sepultadas no soalho de madeira, teimavam berrar quase tão alto quanto o silêncio.
Não reconhecia aquelas faces nem o lugar que como pano de fundo começou a surgir lentamente. Pareciam pinceladas de aguarela aquelas que transformavam o pálido papel numa gravura que impunha agora a saudade… Redescobrira enfim as duas caras, o local, o momento. O trago desta saudade era autêntica sacarose!
Olhei o relógio uma vez mais, este anunciava as ansiadas 7h!
Este silêncio ainda me embalava, mas já sem incómodo, entre sonoridades estridentes e acompanhado pela colectânea de memórias já esquecidas, oferecera-me o som e a imagem em simultâneo.
O silêncio fizera-me cinema.

Tuesday, April 17, 2007

Íman.

Foi ali...
Que a minha definição de espaço ficou marcada no pensamento, como no lugar da vítima ficam marcadas a giz as linhas do seu corpo. Foi em riscos de giz, foi em riscos de giz que sublinhei os vértices da imagem do espaço e salientei os seus pormenores. Soprei com afinco as cores pálidas e fúteis e complementei assim a minha tela, antes limitada ao pálido formato monocromático. Era branco, costumava ser, até acrescentar diferentes tons de várias cores para o pintar.

Pintei o espaço agora que já o sabia.

Quantos espaços não ficaram já presos no purgatório das meras imagens? Esses lugares, onde o mais importante, não é o espaço apenas. Ele serve somente de cenário para um acontecimento do qual nunca ou dificilmente esqueceremos. Pois os espaços são apenas a morada da metamorfose dos actos em eventos.Os espaços não são nada sem as pessoas. Sem os processos de memória de quem vive e sente. Sem o tempo para os viver.Como tal, não, não nos abstraímos do espaço, mesmo sabendo que não é ele o fundamental.

E é aí…
Que a definição do tempo surge em mim como uma imposição de esclarecimento.
Tento pintá-lo…
Mas faltam-me filosofias para o desvendar, faltam-me descrições para o definir. Falta-me ainda tempo para o compreender.
Não o consegui pintar… Afinal faltavam-me ainda tantas cores para o conseguir!

Estabeleço o tempo parando-o.
Lembras-te de quantas vezes o tempo parou à nossa volta, e onde passou só a existir o “algo”…? A única movimentação presente era o cortejar dos nossos olhares, o abraçar dos nossos corpos, o delinear dos nossos sorrisos. Eu lembro-me dessa noite. Desse espaço. Desse tempo. Lembro-me de ti. Do nosso “algo” inexplicável, daquele a que intitulamos de “estranho íman”.O “algo” que sempre precisou de um tempo para existir e de um espaço para acontecer… Precisou de ti, de mim, para que guardássemos todos os pormenores na memória.

Contudo esquecemo-nos…
Não sei se preferimos ou se foi apenas o inevitável. Nem sei se este tem sido um breve “esquecer” para mais tarde voltar a perseverar. Só sei que...

O tempo avançou e o espaço mudou.
Mas o sentimento... esse, ficou.

Tragos de escarlates tesouros.

Entre a proximidade que tentávamos manter e o esquecimento que queríamos afastar, deixamo-nos cair... assim... num estado estranho e paradoxal que ainda desconhecíamos. (Aquela devia ser a morte, pois a vida já a sabíamos reconhecer). Juntos, deixamo-nos morrer... Morremos na demência dos sentidos, na amargura dos frutos proibidos, no desejo de nos termos quando nem isso tínhamos. Bebíamos sangue, o nosso sangue, o sangue do amor. A seiva que nos matava e nos mantinha vivos. O seu sabor era doce... Doce e azedo. Viciava... Viciava e acalmava. Tal como a nicotina, este era um aliciante que sossegava. Bebia-te de um trago só, e tu a mim. Rubros tesouros que nos anestesiavam estes deleites que tão depressa esvaneciam...

Como o aroma tão depressa evapora!, sem se despedir a última gota desaparece no fundo de vidro. Agitas o copo vazio... pedes outro.

Como a inércia tão devagar consola!, sem mais demora anseias nova circulação, artérias cheias, a rebentar de vida. Soltas o corpo... este já nada tem.

Eu quero.
Tu queres.
Queremos sangue novo.

Ébano e Marfim.

Observei-o com admiração e delícia. Ele ali estava… sentado em frente ao piano de cauda preto. Escrevendo nas teclas da mesma maneira que eu o faço no papel... Espetando freneticamente chagas no padrão dos sentimentalistas e corrompendo a razão aos racionalistas, ele teclava simplesmente mas criticava sem palavras, repostava perdições antigas. Reparei que o estava a fazer cada vez com mais intensidade, com mais raiva nos dedos e mais angústia nas notas... A melodia apaixonante viajava para além do ouvido até ao coração. Tocou no meu e senti o rasgo doer, como se as notas fossem puro álcool! A expressão dolorosa que ele possuía enquanto tocava, mostrava que também ele estava despedaçado algures… Não parando por um segundo que fosse, o corpo dele já nem parecia ter controlo próprio. E eu, quieta, só desejava que não mais parasse. Aprazia-me a sentir cicatrizar-me àquele som.
Ele era tão fiel à pauta dos sentimentos!
Parou, ainda embriagado fechou a tampa do piano e sorriu para mim. Cicatrizado. Tal como me conseguiu deixar.
Um dia também eu vou sentar-me num assento daqueles… e tocar notas em teclas brancas e pretas, tocar muito para além da sensibilidade auditiva de quem conseguir ouvir a minha melodia.

Monday, April 16, 2007

Promessas.

Porque naquele momento foram ditas palavras sem certeza, talvez só para “poetizar” o momento, mas que acabaram por apagar toda a sua imprópria beleza.
Promessas… Porque teimamos então fazê-las?! Elas morrem, algumas delas nem chegam a nascer, e para quê?

Quis apenas mostrar-te o mais sublime dos entardeceres… tentei… não queria dizer que te levasse a beijar o Sol comigo!

Quiseste apenas mostrar-me a mais bela das noites… tentaste… mas também não queria dizer que me fizesses sentar na lua, ou trazer comigo uma das estrelas!

Porque são promessas amor… talvez por isso… porque embelezam injustamente as palavras deixando-nos semeados, após a decepção da sua inexecução, pontos de interrogação nas nossas mentes.

Que fazer deles depois? Irão, de certo, atormentar-nos até precisarmos de mentir, para diminuir o poder inabalável das palavras que ficam… dessas promessas… que acabam por morrer.

???????????????????????????

O que fazer deles? No desespero da incerteza que mais tarde ou mais cedo, acaba por matar qualquer sentimento, atamos grossas cordas aos pontos de interrogação e fazemos delas o nosso meio de enforcamento.

Oh, as promessas que foram ditas sem certeza... O impacto delas e da sua beleza. Como nos adocicamos ao sabor daquelas palavras! Como elas nos envenenam!

As promessas que morreram…
As promessas que mataram…

Shuuuu…
Façamos um minuto de silêncio.

Uma última chamada.

O comboio estava ali parado…

Podem imaginar a cena como a de um filme, pois a multidão urbana estava, depois de despejada das carruagens, calada e imóvel, a imagem à nossa volta estava estática e a preto e branco.

Tu respiravas o meu ar e eu o teu. O frio fazia-o bailar em frente dos nossos olhos em danças brancas e rasgadas. As nossas mãos trémulas e gélidas, como as de um cadáver, davam-se numa espécie de cerimónia sagrada. E só as nossas pulsações, que latejavam em coordenação, acordavam as arestas de um silêncio há já algum tempo adormecido. Os nossos olhares falavam-se e partilhavam o mesmo reflexo de contentamento entre tons escuros de chocolate, enquanto que as consciências atarefadas e confusas se questionavam telepaticamente: será isto apenas um sonho ou o real? Não, não era quimera, a flor que desabrochava em pleno Inverno era a flor de uma despedida. O já desabrochar da saudade. Mesmo antes da partida. Quebrando o gélido silêncio, ecoou uma voz feminina pelas paredes da estação; anunciava as próximas chamadas pelos já gastos altifalantes cobertos de pó.Nem ousámos proferir palavra alguma, fosse ela desencorajar aquele acto já demasiado e suficientemente penoso. Beijamo-nos. Lembro-me daquele toque tímido entre os lábios, não querendo mostrar toda a ansiedade e desassossego. O sabor do beijo... o sabor interminável do beijo... eu não queria deixar os teus lábios agora que os tinha reencontrado, não queria perder a sua suavidade, a sua doçura.
Última chamada…

Tu apressaste-te, decidido, começaste a pegar as tuas pesadas malas, mas nesse mesmo instante voltaste a pousá-las no chão. Aquele impasse era ainda mais angustiante. Demos um último abraço. Eu não queria… as pulsações continuavam numa relação quase incestuosa de tão irmãs que eram! Conseguia soletrar o Adeus quando acariciavas com as pontas dos teus dedos os meus cabelos. Encostaste as tuas mãos frias à minha cara, estremeci com um arrepio. (Esse arrepio aconchegou-me tanto meu bem…) Beijaste-me. Seria o nosso último beijo por muito tempo. Aquele que nos momentos de solidão recordaríamos com melancolia. E este nosso beijo marcava agora a impaciência, a despedida injustiçada que ambos rejeitávamos a todo o custo. Os teus lábios foram provocando, desafiando a paciência da inocência, desafiando-me a ir contigo. Eu comunicava-te, de olhos fechados, em pedidos sem som que não te esquecesses de mim, que me escrevesses o mais breve possível. Tu parecias ouvir, tu parecias responder, e as tuas respostas tranquilizaram-me.

Aquelas tuas mãos abandonaram a minha face e o frio regressou. Sem dizer palavra, olhaste-me uma última vez e subiste carregado para a carruagem número 2. Nesse final de tarde não ouvi a tua voz. Nem tu a minha. Não me olhaste pela janela do comboio, não me acenaste sequer. Preferimos assim. A tua ida foi simplesmente anunciada pelo bruto estremecer dos carris e aí, toda a estação retomou ao seu tumulto comum.