Nalgum centro comercial não muito longe daqui, onde o espírito se eleva com uma boa dose de consumo, as objectivas das câmaras de vigilância viravam-se para a multidão reinante. As crianças a fugirem das mãos dos pais e a cada montra que viam suplicarem em birras tanto enternecedoras como irritantes um novo objecto com o qual pudessem saciar os seus caprichos. Os pais perdidos entre choros e balbúrdia misturavam-se na confusão para evitar de pensar na sua própria confusão entre treinar as suas crias aos hábitos do apertar de cinto e controlo de orçamento familiar mensal e ainda assim mantê-las satisfeitas. Os corredores de qualquer shopping por esta altura tornam-se mais assustadores que os da Casa de Espelhos; por muito que se olhe à volta é difícil decifrar seja o que for! Sem esquecer os pobres dos avós que se vêem também obrigados a participar na “saída em família” com o mesmo destino de quase sempre, à espera de atenção e convívio, mas que no final o que só recebem é o frenesi da demanda do materialismo. Qual rebanho perdido as câmaras filmam e detectam dois indivíduos que parecem fugir à regra, nota-se de longe o que os distingue pelo sorriso que ambos ostentam no rosto e pela própria velocidade do passo em que andam. Àquela distância pareciam bastante parecidos, ambos com o cabelo muito preto e estilo de vestuário casual e descontraído. Serão irmãos? Algo no modo como se comunicam diz que não. Não se trata, como é óbvio, da comunicação oral mas sim da linguagem corporal do casal. Nem é algo que se veja, pois ambos mantinham uma separação entre si e não caminhavam de mãos dadas, tal como possivelmente se preveria. Porém, sente-se na caminhada que conversam usando o gesto e o toque, envoltos em sorrisos de ternura. A objectiva da câmara, cada vez mais curiosa, foca-os atentamente e ousa aproximar-se de tal forma que adivinha as palavras que os seus lábios soltam. Os passos param quando ambos chegam a uma pequena galeria, que agora parece uma excelente forma de complementar um pouco de cultura a sítios tão fúteis quanto estes e que está tão em voga. Uma jovem chega-se lentamente ao casal, provavelmente com a mesma curiosidade que a objectiva da câmara e finge-se interessada na tela que ladeia o Magritte. Fragmentos da conversa chegavam aos seus ouvidos, já tinha conseguido quase tanto quanto a lente que os tinha seguido por uns bons minutos. Falam em voz baixa, quase que em sussurros e com a agitação imperante não se consegue decifrar o seu teor. Dava apenas para observar as suas expressões enquanto se falavam. Definitivamente há ali uma ligação muito mais profunda do que eles pretendem deixar transparecer. A dado momento, vê-se nitidamente o olhar dela quando levanta a cabeça para o olhar nos olhos. Sim, há algo mais, aquele olhar encerra carinho e entendimento. Ela olha-o como se mais ninguém existisse no mundo para alem deles naquele instante. A jovem atenta, calcula que ele retribui esse olhar com a mesma intensidade, pois um sorriso ilumina agora o rosto dela. A estranha aproxima-se mais um pouco e sorri para ambos, enquanto vê o mesmo quadro que eles. O casal responde o sorriso. Sente-se uma evidente tensão entre os dois corpos. Aquele sentir, por algum motivo, não o podem gritar aos quatro ventos, preferem vivê-lo assim, reservados, discretos e em silêncio… A frase que ele solta no ar é ouvida pela sujeita curiosa e cessa com as já poucas dúvidas dela acerca disso.
- Um dia, minha pequenina, vamos poder tirar os panos que nos cobrem. Tal como a eles.
Ao que ela responde:
- Por agora é um sufoco, mas ainda vamos ter saudades da clandestinidade, vais ver!
Uma gargalhada cúmplice brota das duas gargalhadas. E a jovem com clara vontade de lhes piscar o olho, como quem partilha um segredo, decide afastar-se discretamente.
Pintura: The Lovers, de Magritte.
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