Cegamente invado o meu lugar escondido, em bicos de pés, percorrendo com as minhas mãos calejadas as paredes frias, apalpando terreno sentindo o trago do inócuo medo passear-me pela saliva da minha boca. Acho que estou em casa, serão estas as paredes da minha morada? Tenho luzes que não se acendem e corredores que não chegam a lado algum e contudo, não me faz a mínima diferença. Tacteando e ensaiando os meus passos em danças vagarosas procuro certificar-me que a cada centímetro que alcanço, encontro cada singular palmo de terra que colmatou proveitosamente e abriu em chagas profundas a minha alma desarmada e incauta, chagas que engolem avidamente os resquícios de uma antiga passagem. Cercou-me a esta irreversibilidade caótica de que me sei capaz de palmilhar novos ou os mesmos trajectos de sempre, mas que por motivos de sanidade mental os prefiro esquecidos. Orgulho-me desse facto, mas não é o suficiente. Estico o braço no denso estio do ar rarefeito e sinto o tacto florear-se ao toque de pele de uma textura diferente da minha. As minhas pálpebras reagem e as pupilas dilatam, como se fossem capazes de voltar a ver naquele instante, os meus olhos.
Tenho a tua mão na minha mão e a mão do teu olhar que insiste em se afastar do vertiginoso toque da minha epiderme. Somos arrebatados pela violência discreta e sincera de quem não sabe o que fazer com tanto dentro das mãos! As respirações traçam-se. Estou cega, não estou muda e no entanto sinto a minha língua atada, cheia de nós incapazes de se amputar, pelo que deixo de conseguir falar, pelo que deixamos de falar. E porque sempre optas por seguir o que faço, ambos somos engolidos no mesmo vácuo do silêncio. De não saber o que dizer a tanto que se tem de dizer perdemo-nos ali mesmo, no mesmo lugar, no mesmo chão, lado a lado e ainda assim tão longe! A tua mão não me guiou a eixo algum e eu quis parar. Aninhei-me no chão e senti que fizeste o mesmo. As nossas mãos, numa só, aparando as arestas das distâncias intransponíveis e delineadas por nós próprios num simples lance mestre de inexperiência. Nas nossas mãos… a nudez.
É o paraíso na Terra. Milhões de dedos esmagam-te a cara e afagam-te o cabelo. Não há tempo para a hesitação. Não há razão para a moral. A pele crepita, sentes a febre a chegar, arranhas a pele até rasgar mas isso não faz parar a tua demência. O arrepio não se trava só por morderes os lábios e te concentrares em coisas más, ele continua, continua ao ponto de deixares de sentir qualquer toque. És desejado, e esse desejo do desejo passa a viver em ti. Cuidado… Consegues sentir? Não sentes por causa do suor, não sentes por causa do latejar do teu batimento cardíaco. Consegues ver? Tu não vês, taparam-te os olhos, não foi? Consegues ouvir, pelo menos? Não! Não ouças, não ouças as respirações, não te atormentes, ouve o piiiiiii… que fica a zumbir na tua cabeça e ri-te estridentemente dele.
- Um dia, minha pequenina, vamos poder tirar os panos que nos cobrem. Tal como a eles.
Ao que ela responde:
- Por agora é um sufoco, mas ainda vamos ter saudades da clandestinidade, vais ver!
Uma gargalhada cúmplice brota das duas gargalhadas. E a jovem com clara vontade de lhes piscar o olho, como quem partilha um segredo, decide afastar-se discretamente.
Pintura: The Lovers, de Magritte.